Colunista - Miriam Taciana Miranda Cruz

Relicário de memórias – marcas de Vovó

Texto escrito pela nossa colunista Miriam Taciana Miranda Cruz em parceria com Nilva Celestina do Carmo e Jussara Miranda.

20/09/2021

O convite de hoje, leitor (a), é para uma viagem ao túnel do tempo, para olharmos atrás e antes de nós. Lá estão nossos antepassados, que nos deram vida.

Aqui contaremos sobre uma pessoa que marcou gerações e mesmo in memoriam representa para seus familiares um exemplo de mulher forte, sábia e fraterna. Até mesmo quem não a conheceu em nosso meio já ouviu ou ainda vai ouvir falar dela.

Eu sempre digo e repito: “Vovó era uma mulher para além do seu tempo”. A cada movimento (um vento, que seja), um artefato (um prato, um tecido), ou som (uma caneca caindo no chão), eu a tenho comigo.

Toda vez que algo escorrega da mão, ou quando sinto cheiro de feijão sendo temperado, ou até mesmo quando vou rezar, antes de adormecer, vem uma estória/história daquelas que ela trazia para a nossa realidade, de forma didática e lúdica. Nesse momento, abro aquele sorriso no canto dos lábios, típico de uma lembrança boa.

Aí confirma-se a atemporalidade da vovó.

Ela, na sua sapiência autodidata, já aplicava storytelling (uma metodologia didática que consiste em contar boas histórias - que agora está na moda, muito utilizada pelos professores no momento), em que com um único objeto/som/movimento ela resumia o sentido da vida, possibilitava a construção do pensamento e a elevação do ser humano.

Pois bem, métodos educativos ela tinha um “bucado”.

É, ela era sabida mesmo. Tinha uma vontade de conhecer, de entender os “porquês”. Adorava uma leitura.  Acho que vem daí nosso fascínio pela leitura. Tenho (Nilva) uma imagem nítida na memória de vovó sentada na mesa da salinha com a lamparina acessa, lendo a história de Santa Isabel. Às vezes fazendo leitura silenciosa, outras vezes dando um suspiro e elevando a voz, demonstrando sua inteira devoção ao que estava fazendo. Estava aprendendo mais para distribuir aquela aprendizagem a quem quisesse ouvi-la.

Sobre Santa Isabel, as partes da história que vovó contava sempre tinha um porquê, e nesse caso sempre era: mesmo os outros nos cerceando, nos impedindo de ser quem somos, jamais deixemos de ajudar aos necessitados. E ela aplicava isso, sempre.

Ela queria ser Doutora (médica), com a finalidade de ajudar a minimizar os sofrimentos dos outros. No entanto, não era permitido que ela e tantas outras mulheres pudessem estudar naquela época, ser quem quisesse. Apesar disso, a vida lhe presenteou com o dom de trazer pessoas à vida: ser parteira. Não foi Doutora formada, mas foi Doutora de vidas! 

Seguimos com um conto sobre a vovó - narrado por Nilva:

De tarde, lá pela hora do café (lembre-se: café na roça é mais cedo), a vovó sentada à sombra da casa, na escada da porta da sala, com seus “mulambim” no colo (mulambim: expressão que vovó usava para definir a matéria-prima de uma das suas prediletas atividades, que era o reconstruir), ouve-se um cantar corriqueiro no quintal: Co-co-ri-cóóó. Ela (vovó), com seus olhos claros e um sorriso maroto (que só ela tinha), olha para a menina que está sentada na “pedra”. Uma pedra de formato arredondado, parecia um ovo gigante, com aproximadamente 60 cm de diâmetro, fincada no quintal, bem próxima da escada. De lá dessa pedra, com as pernas encolhidas para não tocar os pés no chão, a menina observava uma carreira de formigas, que como uma procissão, saindo e entrando de debaixo da pedra, seguiam seu destino rumo ao paiol.  A avó, dá aquele suspiro e pergunta: “cê sabe por que que o galo canta?”.

Após dirigir a pergunta à menina, ela inicia o conto: “Uma vez, um viajante...”. Assim que a avó começa a narrar o conto, a menina, curiosa que só, com o cabelo caído no rosto, se aproxima para ouvir mais uma das histórias da vovó. No entanto, antes de prosseguir com a explicação, ela (avó), com uma das mãos pega o rosto da neta, e com a outra mão faz um “enroladinho” das mechas do cabelo (como se fosse uma cordinha), firma esse enroladinho na cabeça da menina e resmunga: “Por que sua mãe cortou essa beleza?” (Vovó chamava franja de beleza). E conclui (determina e afirma): “Precisa de pôr uma pregadeira nisso. Faz ficar com o olho torto”. Enquanto falava com aquela voz doce, olhou com aqueles olhos claros nos olhos da neta, deu aquela risadinha marota e distraíram-se com o novo momento. Na menina permaneceu, todas as vezes que ouvisse novamente o cantar do galo, durante toda a sua existência, infinitamente, aquela sensação afável da mão quente da avó no rosto e o afago nos cabelos, além da nitidez dos olhos e do sorriso, soprando um ar gostoso e puro, daquela avó que parecia mais um ser sobrenatural, um anjo, com as asas prateadas enroladas numa “pituca”. (Continua em: “Conto do Galo”).

Em homenagem à vida de nossa avó e bisavó Izabel Crescencia de Miranda. Que  passou a se chamar Izabel Silveira de Miranda, devido às mudanças temporais, inclusive  o seu casamento. A nossa Vovó, mais conhecida ainda como Bilinha. Vovó Bilinha nasceu em 14 de setembro de 1906, com registro civil datado de 24 de setembro de 1906, na localidade Boa Vista, distrito de São Domingos do Monte Alegre (Missionário – Alto Rio Doce/MG).

Miriam Taciana Miranda Cruz - Advogada, graduada em Direito pela UFJF; Pós-graduada em Mediação de Conflitos e Arbitragem

 

 

Nilva Celestina do Carmo - Professora do Departamento de Ciências Gerenciais - IF Sudeste MG - Campus Rio Pomba - Mestre e Doutoranda em Economia Doméstica pela Universidade Federal de Viçosa - Instagram: @nilvaealan

 

Jussara Miranda - Escrevente extrajudicial. Bacharela em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. @jussara_mirand